sexta-feira, janeiro 04, 2008

Como se fosse ontem, quando chega amanhã?

Quando as pessoas dizem lembro-me como se fosse ontem, acho a expressão surreal, impossível de se concretizar: como é que eu me posso lembrar de algo que aconteceu há anos, como se fosse ontem, se eu mal me lembro do que aconteceu ontem? Não sei o que comi há três dias ou o que vi na televisão há quatro e nem me lembro de cenas do último filme que vi no cinema, mas lembro-me, como se fosse ontem, o ano de 1992 quando cheguei a Portugal.

Para começar, disseram-nos que após sair do Aeroporto, teríamos que apanhar uma camioneta para o sul do país. Ora, camioneta para mim eram aqueles transportes de animais?! Imaginava-me entre galinhas e cabritas, viajando um percurso de cerca de três centenas de quilómetros… E, para confirmar ainda mais o meu pensamento, imagine-se o susto que levei quando soube que a dita "camioneta" sairia de um tal de Campo de Cebolas. Meu Deus! Era essa a Europa que me prometiam os meus pais e as minhas fantasias de criança?

Não sabia eu que era só o início.

Cresci em recusa constante. Desenvolvi o meu gosto apurado por Tom Jobim e afirmando o meu grupo favorito como sendo os Barão Vermelho. Aprecio o trabalho de Salles e Meirelles e, como não poderia deixar de ser, não resisto a um bom rodízio gaúcho (ou pseudo-gaúcho!). Confundi-me todo naquela aula de história com um fraco D. Pedro I enamorado de uma D.ª Inês, quando sempre imaginei D. Pedro I quatrocentos anos mais novo, forte e viril. Aprendi que o Brasil aclamou independência de Portugal uma vez, mas que Portugal teve umas duas (ou três? afinal não sei!) independências de Espanha. E, ainda hoje recuso-me em dizer que o feminino de rapaz é rapariga!

Mas acabei por viver e crescer, meio calejado pelas artimanhas de um sistema de ensino constituído por uma geração de pessoas que salientavam as falhas para nos encorajar (?), e meio amadurecido pelo encorajamento das minhas professoras de alemão (Maria Adelina Godinho) e de biologia (Ana Freitas).

Vivi, cresci e aprendi muita coisa.

Não precisei de estudos científicos para ver a realidade do país. Sei, por observação natural e sistemática, que se trata de um povo mais caloroso que os nórdicos da Europa (é por isso que eles tanto gostam de cá vir), mas não tão caloroso como o Brasil ao qual estava habituado. São um povo dotado de amor para dar, mas que ainda não notou que o excesso de amor pode-se converter em ausência de desprendimento das próprias ideias e, por consequência, em raiva cega que impede ver determinadas realidades básicas. E, sim, acima de tudo, é o povo do qual retiro muitos amigos que levarei comigo, onde quer que vá, levando também o meu conhecimento académico, as minhas potencialidades e a minha forma de ser, que acaba por ser uma mescla clara e evidente entre a Europa, o Brasil e um pouco de Médio Oriente dentro de mim.

Mas é isso que levo de Portugal: potencialidades. Aprendi na escola que havia dois tipos de energia, as potenciais e as cinéticas. As primeiras dos objetos estáticos e a segunda dos objetos em movimento. Portugal é, sem dúvida, um país de energia, mas de energia potencial. A cinética converte-se em potencial e lá se mantém, tal como na última página do livro de Eça de Queiroz.

Veja-se a quantidade de portugueses que saem hoje, em busca não de algo melhor, mas na busca de um espaço seu, lá para fora. Na ciência, na política, na literatura. António Damásio nunca poderia ser um possível nobelizado em Portugal, Guterres e Barroso foram considerados, por muitos, dos piores governantes portugueses e Saramago decepcionou-se com o seu país indo viver para outro lado…

Quando é que tu, Portugal, senhor dos Oceanos e do passado terrestres, aspirante a V Império, darás ouvido ao futuro? Reformulo: Quando é que os teus líderes saberão investir na educação, na formação, na ciência, na tecnologia e na cultura? Ou melhor ainda:

Quando é que os senhores que teimam em não sair da cena da liderança política, económica, religiosa, educativa, científica e cultural darão espaço à próxima geração, para que tu possas sobreviver e não cair de vez?

A resposta, infelizmente, só pode ser uma: “logo se vê!

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7 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Sam, um belo post que faz refletir. Mas você tocou num dos meus heróis pessoais: o Barão Vermelho. Vivi bons momentos ao som do Cazuza. Bons momentos.

Obrigado pelo seu gentil comentário lá no APOIO.

04 janeiro, 2008 15:19  
Blogger Andréa Motta - Conversa de Português disse...

"Quando é que os teus líderes saberão investir na educação, na formação, na ciência, na tecnologia e na cultura?". Saramago fala de Portugal, mas nós, brasileiros, lemos o Brasil nestas frases.
Parabéns! Belíssimo texto!

04 janeiro, 2008 20:09  
Blogger Lealdade Feminina disse...

Nossa, grata surpresa te encontrar... penso muito parecido, sobretudo no que se refere a >onde está a tal Europa que me venderam durante tanto tempo...>
Vou adicionar seu blog ao meu mae-ilegal, pq foi criado pra falar de tudo isso, mas não tenho muito tempo, mas da perspectiva de uma mãe ilegal... E obrigada por não dizer essa palavra... eu odeio qdo os brasileiros dizem por picardia 'rapariga', pois lá no fundo é com intenção de ofender mesmo... Beijinhos de baunilha...

05 janeiro, 2008 11:22  
Blogger SAM disse...

Obrigado pelas vossas visita e pelos vossos comentários!

Apoio Fraterno, Barão Vermelho com Frejat, com Cazuza e até quando o Ney lá aparece é Barão Vermelho! Apesar de, claro, eu ter a minha preferência.

Andréa Motta: acredito que Saramago compartilhe comigo as minhas perguntas, no entanto não era a ele que eu citava, senão ao meu espírito. De fato, creio que podemos ler o Brasil e a ampla maioria dos países do mundo nessas palavras de dúvida quanto aos líderes, mas a questão específica portuguesa está para além disso: está no fato de os líderes de outros tempos não darem espaço aos potenciais líderes da nova era (como eu digo logo a seguir no texto)...

E, Lealdade Feminina, a questão fundamental que nós imigrantes deveríamos ter em mente é se nos venderam essa imagem de Europa, é porque nós a compramos! O desafio é saber se podemos fazer algo e o que fazer com esse "produto" que optamos comprar.

05 janeiro, 2008 13:59  
Blogger Jonice disse...

A tua chegada a Portugal tem então a mesma idade de meu filho, e também eu lembro-me como se fosse ontem o dia em que ele nasceu.

Sam, digitei o endereço do link para o poema da Maya Angelou conforme deixaste lá no English, mas não resultou. Vim para cá e cliquei no arquivo de julho 2006, conforme data no mesmo link, masnãoo encontrei alí também. Sim, adoraria comparar nossas traduções!

Obrigada pela visita e pela oferta.

Bom fim de semana :)

05 janeiro, 2008 20:47  
Anonymous Anónimo disse...

O teu post faz-me reflectir..o que é sempre bom!
Parabéns e bom 2008.

07 janeiro, 2008 12:32  
Blogger Renata Livramento disse...

Poxa que legal seu post, nunca tinha pensdo em Portugal desta forma...muito interessante!!!

Bjo grande!

07 janeiro, 2008 23:23  

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